#CarnavalSemAssédio Folia de 2019 será a primeira com o crime de importunação sexual

Saiba o que é proibido. Se for vítima, denuncie!

Por: Rede Feminista de Juristas - 1 de março de 2019

Campanha Carnaval Sem Assédio

Com a aproximação do Carnaval, surgem muitas dúvidas acerca das violências sexuais e das violências discriminatórias que ocorrem nas ruas e espaços de uso coletivo, durante festas, blocos, em bares, etc. Afinal, há uma variedade de atos ofensivos que guardam importantes diferenças entre si (apesar de todos serem inaceitáveis). Será que todos são crime ou, ao menos, proibidos de alguma forma?

Neste texto, a Rede Feminista de Juristas explica brevemente como a legislação conceitua esses atos, abordando, principalmente, as recentes modificações legislativas ocorridas em 2018 que tiveram como foco os crimes contra a dignidade sexual. Além das informações deste texto, você também pode obter dicas de como como agir quando esse tipo de violência ocorrer clicando aqui.

O que é dignidade sexual?

Dignidade sexual é o direito que todas e todos temos de sermos respeitados no que se refere ao exercício de nossa sexualidade e de ter uma vida livre de violências sexuais.

Uma das formas que o Estado brasileiro elegeu para proteger a dignidade sexual das pessoas foi a criação de crimes. Daí vem a previsão dos “crimes contra a dignidade sexual”, um dos capítulos do Código Penal.

O Brasil tem um compromisso formal com a proteção da dignidade sexual das mulheres, pois assinou a Convenção de Belém do Pará, que prevê a obrigação dos Estados de prevenir e punir violências sexuais contra esse grupo social em específico, tendo em vista sua posição num contexto de desigualdade de gênero.

Cabe lembrar que há outras estratégias que podem ser utilizadas para enfrentar esse tipo de problema, como campanhas de conscientização, a exemplo das que ocorrem na época do Carnaval. A despeito da importância desse tipo de campanha, seria importantíssimo que tivéssemos políticas educacionais permanentes que garantam discussões sobre o tema da violência sexual e do direito à dignidade sexual no ambiente escolar, dentre outras.

Dignidade sexual e reformas do Código Penal

Assim como todas as leis, o Código Penal é resultado de disputas sociais e de decisões de grupos que ocupam as instâncias de poder em certo momento histórico. A parte do código que trata das condutas que configuram violência sexual não é diferente.

Antes de 2009, o Código Penal sequer adotava o termo “dignidade sexual”. Os crimes referentes à violência sexual eram denominados “crimes contra os costumes”, o que indica uma visão mais preocupada com a moral sexual do que com os direitos a uma vida sem violência. Também no cenário anterior, o crime de estupro só ficava configurado se a vítima fosse mulher, enquanto os demais casos se enquadravam no crime de atentado violento ao pudor (hoje inexistente). Atualmente, o gênero da vítima é indiferente para a caracterização do estupro.

A reforma mais recente, nessa parte do Código, ocorreu em setembro de 2018 e trouxe uma série de modificações relevantes. Abaixo, explicamos algumas dessas novidades, como a criação do crime de importunação sexual e do estupro corretivo.

Novo crime de importunação sexual: o que mudou?

As violências que ocorrem no ambiente público e que popularmente chamamos de “assédio” abarcam uma multiplicidade de ações. Dentre elas estão as cantadas inapropriadas, insistentes e degradantes, passando por condutas como apalpar, encoxar e até casos de ejaculação. Situações como essas não são incomuns no transporte público, nas ruas e até em carros de aplicativo de transporte.

A criação do crime de importunação sexual foi impulsionada pelo noticiamento constante de tais práticas abusivas e pela incapacidade da legislação anterior de abarcar, de forma adequada, alguns desses casos de violência sexual.

Antes do crime de importunação sexual, havia três formas de enquadrar condutas assim na esfera criminal: Ato Obsceno (artigo 233 do Código Penal, ainda em vigor); Contravenção Penal de Importunação Ofensiva ao Pudor (artigo 61 da Lei de Contravenções Penais, que foi revogado pela Lei 13.718/2018); e Estupro ou Estupro de Vulnerável (artigo 213 e 217-A do Código Penal, ainda em vigor). Para esclarecer cada caso, vamos falar sobre estes crimes e contravenções e depois abordaremos o caso da Importunação Sexual (inserido no artigo 215-A do Código Penal pela Lei 13.718/2018).

Ato Obsceno: abarca apenas práticas de atos obscenos em público, como a masturbação dentro do metro. O ato obsceno não é destinado a uma vítima específica, mas sim uma exposição inapropriada em um local público. O caso que chocou o país em que um homem ejaculou no pescoço de uma mulher não se enquadraria neste crime por ter sido mais grave, já que foi um ato direcionado a ela e não uma prática inapropriada aleatória sem vítima específica. Este crime ainda existe e pode ser denunciado para as autoridades policiais caso ocorra. A colheita de provas com imagens auxilia no processo.

Contravenção Penal de Importunação Ofensiva ao Pudor (extinta):contravenções penais são ilícitos de menor gravidade em relação aos crimes e, por isso, têm penas menores. Normalmente, esta contravenção era utilizada para casos de assédios verbais, cantadas grosseiras, dentre outras condutas. O exemplo da ejaculação no ônibus também era difícil de ser enquadrado aqui pois esta contravenção não tinha sido criada para abarcar casos com essa gravidade. Por essa razão, a mesma lei que criou o crime de importunação sexual também extinguiu essa contravenção. Isso tem gerado controvérsia, pois agora não se sabe exatamente como serão enquadrados os casos de assédios verbais.

Estupro ou Estupro de Vulnerável: Desde 2009 o Código Penal não exige que haja penetração vaginal ou anal para que o crime de estupro seja configurado. Isso significa que um ato libidinoso não consentido (como masturbação, sexo oral, apalpar) pode configurar estupro. A depender de quem é a vítima, o crime é entendido Estupro de Vulnerável: nesse tipo de caso, há uma situação de maior vulnerabilidade da vítima em conseguir se defender, seja pela idade, por alguma incapacidade permanente ou momentânea (ex: doença, embriaguez, “boa noite cinderela”, sono profundo, etc). Vale lembrar que os atos sexuais com menores de 14 anos são considerados estupro.

Importunação Sexual: Este novo crime foi inserido no sistema com o objetivo de enquadrar melhor as condutas que não eram nem a contravenção de Importunação Ofensiva ao Pudor nem Estupro, como por exemplo, o caso da ejaculação no transporte público. Ele se configura quando uma pessoa “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Isso significa que o ato pode ser tanto para satisfazer o seu próprio desejo sexual como para satisfazer o desejo de outro. A pena para esse crime é de reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constituir crime mais grave, como estupro, por exemplo.

Antes da figura da importunação sexual, muitos atos ofensivos, de caráter sexual (como apalpar partes íntimas), acabavam sendo enquadrados como estupro ou como importunação ofensiva ao pudor pela ausência de uma figura mais adequada e intermediária. Como esta figura penal é ainda muito recente, não temos casos suficientes para saber como os juízes e desembargadores têm entendido e aplicado este crime na prática.

Uma dúvida ainda não resolvida, por exemplo, é se agressões verbais e cantadas inapropriadas serão agora enquadradas como importunação sexual, já que a importunação ofensiva ao pudor foi revogada.

Há também críticas à definição do crime de importunação sexual, já que, para diferenciá-lo do crime de estupro, costuma-se apontar que o primeiro é aquele cometido sem consentimento e sem violência, enquanto o último é aquele cometido sem consentimento e mediante violência ou grave ameaça. A pergunta feita é: como é possível afirmar que um ato não é violento se é praticado sem consentimento?

Denúncia dos crimes contra a dignidade sexual: quais são os prazos?

Antes da reforma de 2018, alguns dos crimes contra a dignidade sexual eram o que chamamos de “crimes de ação penal pública condicionada à representação”. Esse nome longo significa que a responsabilidade de processar é do Estado, por se tratarem de ofensas graves contra a vítima e a sociedade como um todo. Contudo, para que isso seja feito, é necessário que a vítima se pronuncie demonstrando vontade que o agressor seja punido. Isso se aplicava para alguns casos de estupro, por exemplo, assim como ainda se aplica para diversos outros crimes no Código Penal.

Na prática, o que ocorria era que a vítima tinha um prazo de apenas 6 (seis) meses (contados a partir da data do crime ou da data que a vítima tomou conhecimento de quem era o seu agressor) para demonstrar que tinha vontade de vê-lo processado. Isso era feito tanto na delegacia (ao fazer o boletim de ocorrência) como no próprio Ministério Público, órgão responsável por processar o agressor. Esse ato é chamado de “representação”.

Com a Lei 13.718/18, todos os crimes contra a dignidade sexual se tornaram “crimes de ação penal pública incondicionada à representação”. O efeito prático é que a partir de agora não existe mais esse prazo de 6 (seis) meses para que a vítima demonstre vontade de ver seu agressor punido (ou seja, realize a representação). Agora, basta alguém informar a autoridade policial ou o Ministério Público, não necessariamente a vítima. Assim que eles tomarem conhecimento do fato e tiverem indícios de quem cometeu o crime e provas suficientes, o processo já poderá ser instaurado.

Uma característica comum dos crimes contra a dignidade sexual é que as vítimas muitas vezes precisam de um tempo para processarem o ocorrido, até para entender o que ocorreu e como querem agir a respeito, especialmente porque vítimas de violência sexual ainda sofrem preconceito e muitas vezes são expostas ou culpabilizadas pela violência. Assim, o prazo de 6 (seis) meses, chamado de decadencial, permitia que muitos casos ficassem impunes pois era um tempo muito curto para essa tomada de decisão.

Agora, o prazo que as vítimas devem se atentar é o prazo prescricional. Este é o tempo que o Estado tem para processar e punir o agressor (diferente do prazo decadencial). O prazo prescricional é muito mais longo e depende de qual crime foi cometido, além das próprias características do crime. Isso significa que o prazo para o Estado processar e punir um estupro é diferente do prazo para um estupro de vulnerável, ou uma importunação sexual. Como isso varia de caso a caso, é recomendado consultar um advogado ou a Defensoria Pública assim que a vítima se sentir preparada para tomar as medidas legais. Assim, com base naquele caso específico será possível entender o prazo prescricional aplicável.

Violências de caráter discriminatório

Sabemos que, em muitos casos, a violência sexual vem acompanhada de outras violências ou associada , na medida em que o machismo se entrelaça com o racismo e a LGBTfobia. Como a lei trata essas questões? Explicaremos brevemente abaixo.

Além disso, caso você seja vítima desse tipo de violência, é importante saber que, em alguns locais, há delegacias com atendimento especializado em crimes de discriminação e outras em crimes praticados contra as mulheres. Sugerimos que esses serviços sejam buscados, já que foram pensados para atender esse tipo de caso.

Também recomendamos que seja solicitado que conste, no boletim de ocorrência, a questão da discriminação (seja racial, seja quanto à orientação sexual e identidade de gênero), já que é importante que ela seja investigada e para que sejam produzidas estatísticas sobre esse tipo de violência.

‘Estupro corretivo’: violência sexual e LGBTfobia

Nessas semanas, a discussão sobre a criminalização da LGBTfobia tem ocupado as redes, especialmente porque uma ação sobre o tema está sendo apreciada pelo STF. Por ora, não há um crime de homofobia previsto na legislação. Mas isso não significa que as violências com bases discriminatórias sejam permitidas.

Com a recente reforma do Código Penal, por exemplo, foi criada a figura do “estupro corretivo”, que é aquele praticado para “controlar o comportamento social ou sexual da vítima”, o que causa o aumento da pena aplicada ao agressor.

O crime de “estupro corretivo” é, em geral, cometido contra pessoas bissexuais, mulheres lésbicas e outras pessoas que integram a comunidade LGBTI. O “Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017”, por exemplo, aponta como esse tipo de crime representa uma faceta gravíssima da LGBTfobia.

Dessa forma, podemos considerar essa figura como uma forma indireta de criminalizar a LGBTfobia – ainda que essa criminalização esteja restrita àqueles casos em que essa violência está associada ao crime de estupro.

Crimes de Injúria racial e Racismo

Não raro, em situações de importunação sexual, quando o agressor é confrontado pela vítima, ele a retalia com ofensas verbais ou até mesmo agressões. Essas ofensas verbais configuram crime de injúria. Caso elas possuam teor racista, irão configurar o crime de injúria racial. Em razão do agravamento pela natureza discriminatória da ofensa, a injúria racial possui uma pena mais grave.

Cabe relembrar que o crime de racismo e o crime de injúria racial são distintos. Em geral, para diferenciá-los, utiliza-se a seguinte distinção: a injúria é destinada a um indivíduo específico, já o crime de racismo é destinado à coletividade e abarca uma série de condutas discriminatórias.

Embora seja importante conhecer esse critério, também é relevante saber que ele é alvo de muitas críticas, já que, no fundo, ambos os crimes atingem uma coletividade, na medida em que a injúria racial também está associada à horrível ideia de que há grupos sociais que não merecem respeito e dignidade.

Seja crime ou não, seja na folia ou na vida, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, ou seja, é necessário estarmos atentos às diversas formas que o racismo e o preconceito pode assumir e combatê-los de forma consciente e permanente, sempre com uma postura de autocrítica e de proatividade na defesa da igualdade. Para isso, devemos rever uma série de condutas que reforçam estereótipos raciais, como, por exemplo, a utilização de fantasias como: “nega maluca”, de “índio” e tantas outras que ridicularizam, infantilizam ou hipersexualizam grupos étnicos-raciais. Isso se aplica também à prática de “blackface”.

LGBTfobia e racismo em leis estaduais e municipais

Há Estados e Municípios que possuem leis, de natureza administrativa, que punem a LGBTfobia e a discriminação racial, impondo penas como a multa, por exemplo. A denúncia é feita separadamente, em instâncias de denúncia próprias. Atualmente, 14 Estados brasileiros contam com leis assim em relação à LGBTfobia. Um exemplo é o Estado de São Paulo, que possui duas leis, uma para cada tema, e prevê penalidades como advertência e multa e suspensão ou cassação de licença para funcionamento no caso de estabelecimentos.

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Redação Revista Embarque

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